Visões Intergalácticas de quatro Artistas com tintas,
exalando cheiro de Cana Caiana.
ALVES DIAS (*)
A cadeira sempre exerceu um papel utilitário na história do homem. Como peça de mobiliário, tem o seu tempo e vida limitado. Como instrumento de uso muda sua natureza, prestando-se a serviços de poderosos, com status de nobreza: Cadeira Luis XV, Cadeira Austríaca, Cadeira Dom João VI, Cadeira de Campanha, Cadeira de Balanço, Cadeira de São Pedro, Trono, Sólio Pontifício, Cadeira Episcopal, Cadeira Gestatorial. Toda ela é repouso de bundas famosas: de papas, reis e princesas; nobres e plebeus. O certo é que esse objeto reservado ao descanso tem se postado fiel ao seu destino, prestando-se até à execução de criminosos; uns famosos como o bandido da luz vermelha (o escritor norte americano Caryl Chessman executado em 02/05/1960 na câmara de gás da penitenciária San Quentin, Califórnia), também de heróis – figuras do mundo - como o casal de cientistas Rosa Luxemburgo, condenado à cadeira elétrica. Ela se dispõe ao serviço do egoísmo humano como costuma acontecer com as coisas animadas e inanimadas pelas mãos impiedosas dos homens.
No momento até 04/09/2003 fica em exposição uma série de cadeiras pintadas por quatro artistas que se imaginaram no exercício de releitura da obra do outro parceiro. A mostra montada no Restaurante Panquecas e Saladas, na rua do Brum, no Recife Antigo, fala muito mais do que o simples prazer de se interagir entre eles.
O título é bem sugestivo: “Sente se Sinta se”. Este epíteto é uma metáfora significativa de captação extra-sensorial de sentimento humano que os quatro artistas, talvez, nem atentaram e admitiram como uma simples amostragem de arte.
Todas as ações do homem é um retrato da disposição de atender desde as idiossincrasias, até o instintivo desejo de realização gerado pela incansável busca de satisfação de uma necessidade. Quer material, estabelecido pela sobrevivência, ou metafísico, no sentimento do medo; engendrado pelo mistério da incerteza que nos assalta, permanente, diante da impotência de decifrarmos o futuro.
Por certo, desapercebidos, eles tenham intuído o que os mestres do Zen-Budismo classificam “Satori” (um estalo, uma luz que se acende), caracterizado por exercício intuitivo da mente para apreensão de uma resposta, que a mais das vezes somos capazes de corresponder quando movidos a expurgar os nossos demônios.
Não foi intencional fazer uma avaliação psicanalítica dos quatro artistas, por não deter conhecimento. Apenas descrevo o que minhas lucubrações me manifestam.
Clayton Valões, a quem conheço, faz das suas telas uma leitura de sua personalidade; espiritualista cardecista, introspectivo; sincero pauta-se movido por um comedimento que sugere admoestação de disciplina monástica. Uma de suas telas lembra uma passagem figurada na crença da reencarnação. Ao ver a pintura, ela passa a emoção de algo extraterreno; que nos conduz através de uma paisagem abissal, aonde o pensamento do contemplador é levado, por hipnose, a caminhar dentro, senão conduzido pela mente do artista que vaga num vácuo de Verde-azul infinito. As cadeiras flutuam como objetos “animados” que podem ser vistos como asteróides iluminados por focos de luz quase mortiça, porém movidos por uma força invisível que os impelem a girar através do caos das paragens da solidão humana. A tonalidade verde do quadro é profunda como o mistério das coisas siderais.
Igualmente os quatro artistas apresentam-se irmanados por uma parceria de insinuações capazes de sugerir, no bom sentido, uma mancomunada disposição de semelhança, não obstante a diferenciação estilística que mais patenteia a capacidade técnica dos expositores. Embora, insistentemente, as pinturas insinuem tamanha aparência, mesmo que se saiba instintiva, não é difícil adjunção foral de mensagens místicas, ainda que se permita dispensar conveniências, podendo-se descobrir evocações “extraterreno”, conquanto individualizado, no contexto da mostra, filia-se entre os pares com reações que sugerem semelhança e paridade, apesar de poder-se distinguir a obra de cada artista.
Paulo Régis, que o conheci por uma mini tela doada ao acervo da “Iconografia do Cangaço” acervo sob minha curadoria no Instituto Mythus Cultura e História dos Sertões, pauta-se por um rigor impecável no tracejado do desenho e na limpeza da cor. Há uma firmeza retilínea nos traços que delineiam seus objetos, que lhe sugere uma pessoa do bem. O sentido temático dos seus quadros segue a mesma trajetória psicológica marcada pela “simbologia sideral” da mostra.
Seus objetos repousam num campo de luz incandescente. A luminosidade parece sugerir um propósito de ofuscar a maledicência comum na natureza humana. As cadeiras não foram feitas para sentar. Objetiva-se, isto sim, como a luz de uma noite de lua, a espelhar do sol um clarão para iluminar o mundo.
Braz Marinho apresenta uma tela com uma cadeira que se projeta para o infinito com o espaldar que parece querer tocar o céu. Por detrás do estranho objeto surge uma paisagem quase amorfa. Pintada com leveza de aquarela sugere um distanciamento do cenário de fundo, tratado com mestria, propositado a impressionar o espectador de sua frágil condição de mortal. A cadeira imponente parece esperar o verdugo que enviará o observador para a floresta sombria onde impera a morte num mundo de onde ninguém volta. Fitar a sua perspectiva é sentir um vazio indecifrável. O colorido sombreado de Amarelo-nápoles parece sucumbir todas as esperanças. A contemplação visual deixa antever uma sensação de morbidez, tamanha é a sugestão que o artista tencionou passar para o espectador, alertando-o: “do pó viestes, ao pó retornarás”. E o pó tem a cor da floresta do artista.
Irys Monroe, que mais se parece ter sido moldada com massapé do nordeste, a divina mulher filha do Rio de Janeiro, adotada por Pernambuco e naturalizada francesa, emoldura suas telas com tons pastéis de mistura dos verdes. Há preocupação cromática na busca de luz. Parece temer que o sentido lhe possa esquecer as cores que iluminam o nordeste do Brasil.
Sua paleta é generosa e a cor espalha-se espatulada pelas telas. As paisagens cinzentas da Europa ferem-lhes as retinas. E lhe obriga anualmente, por duas vezes, voltar ao Brasil.
Confessou-me o tédio que lhe assoma ao cair da tarde diante do cavalete a esbater-se, teimar, procurar, insistir em lembrar, com veemência, a cor vibrante da luminosidade do céu nordestino.
As tintas de sua pintura são mescladas com os tons da vegetação que circundam o terreiro de sua casa no Engenho Juçaral nas cercanias dos municípios de Cabo de Santo Agostinho e Vitória de Santo Antão. É um colorido estendido num lençol verde pintado pela vegetação agrária do cultivo da cana, a perder de vista, “até aonde o olho alcança”, como falava Dona Ritinha, lembrando seu tempo de infância.
Sua arte é prenhe de vida, como é também a graça de sua alma, vivaz, terna, repleta de alegria, aberta, entregue, fêmea, como ousa ser a mulher brasileira sensual, deixando escapar dos lábios uma graça que se abre em riso espontâneo, dessedentando como água de pote.
A exposição, o significado mítico da proposição do título, reunindo os quatro jovens artistas, investidos de crença e esperança, nestes dias de incertezas, afirma que nem tudo está perdido e que nos movimentos de contestação social, reivindicando cidadania para os excluídos, vestindo as cores da pintura ingênua de uma Gina (de Olinda), e de Irys que têm a cor verde, que tremula na bandeira do Brasil, em colorido mais amplo, refletindo a cor das terras devolutas, espalhadas em milhares de léguas que se pretendem “SER” dos desvalidos.
Suas pinturas – de Gina e Irys – são pejadas de verde. De tons Verde-vessi, Verde-esmeralda, Verde-bandeira, Verde-veronese.
Das suas paletas diferentes da minha, não escorrem a tinta Vermelhão-escarlate que é a cor do sangue derramado impune como o sangue de Chico Mendes (o Curupira da Amazônia), e de tantos outros heróis anônimos do massacre dos Carajás; a cor do sangue que ensopa a terra no bárbaro ofício da morte.
As cores das telas de Gina e Irys são “VERDE”, como é, no desejado, a cor da esperança.
Despertam as crenças da vinda de uma festiva manhã de confraternização; com as cores da liberdade, pintadas de Azul- cerúleo, que é a cor do céu, de Amarelo-nápoles, que é a cor dos minerais, do Verde-esmeralda que é a cor das matas, do Vermelhão da china que é a cor do sangue, do negro que é a cor do petróleo e também da morte. Do branco que é a cor da PAZ.
E exala o cheiro acre doce da cana caiana.
Olinda, agosto de 2003
(*) ALVES DIAS é sociólogo, poeta, contista e artista plástico.
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